Os negociadores dos tratados constitutivos do Mercosul foram, em seu tempo, criticados por agir com timidez e não adotar todos os instrumentos econômicos, políticos e sociais em vigor na Europa, modelo para muitos do que deveria ser um programa de integração regional. Para os açodados e românticos "integracionistas latino-americanos" de plantão, o Mercosul deveria ter, desde logo, instituições supranacionais, um Parlamento e um Tribunal, apesar do caráter inter-governamental do agrupamento que surgia e das disparidades entre as economias que o integravam. Da mesma forma, insinuavam a conveniência da constituição de fundos para o desenvolvimento regional (nos moldes do atual FOCEM), sem que tivessem sequer concluído, com êxito, essa missão dentro do seu próprio território nacional. Essa corrente maximalista sempre deu margem a uma avaliação do Mercosul como um projeto institucionalmente incompleto, prejudicado por um "déficit democrático" e voltado exclusivamente para a expansão do comércio intra-regional ("neoliberal" era o rótulo mais simpático que merecia desde essa ótica). Como esses críticos não buscassem alcançar uma inserção competitiva do país no mercado internacional - preocupados que estavam e estão em apenas proteger setores ineficientes em suas respectivas economias - desmereciam os efeitos positivos da complementariedade regional e seu impacto na otimização dos custos de produção entre os países integrantes do Tratado de Assunção. Para eles, o Mercosul deveria ser o "passe de mágica" que nenhuma das economias soube produzir isoladamente. O fato de que o Brasil era (e é) a maior economia do grupo lhes dava (e dá) uma sensação inebriante de auto-confiança e poder, que justificaria que assumíssemos, desde logo, uma posição de "benefactor" (proposta revestida de uma impecável retórica de solidariedade regional, alicerçada nos ambiciosos propósitos embutidos no parágrafo único do artigo 4 de nossa Constituição).
O Mercosul, tal como projetado, era (e é) um esquema de integração essencialmente econômico e comercial (nisso concordamos). Sua crescente metamorfose em instrumento político (simbolizada pela adoção da "claúsula democrática", em 1996) e posteriormente social (com a Declaração Sociolaboral de 1998, depois ampliada pelos programas introduzidos a partir do Governo Lula, como o FOCEM) revelam não sua evolução, mas sua dificuldade em consolidar os propósitos originais dos "founding fathers" (claramente perceptíveis na proliferação de acordos de restrição voluntária, na ampliação das listas de exceção à TEC e em outras transgressões dos receituários do livre comércio e da união aduaneira). Forçoso é admitir também que o Mercosul não foi muito pródigo na assinatura de acordos com países fora da região (o único concluído, com Israel, está longe de integrar a lista dos "dez mais" do comércio exterior dos Quatro). A culpa, em geral atribuída a nossos sócios, é também brasileira, em função de nossas limitações negociais, por pressão de setores internos vulneráveis à concorrência externa. Nessas condições, o Mercosul já vinha perdendo progressivamente consistência conceitual e funcionalidade para os interesses nacionais.
As alterações introduzidas no desenho original do Tratado de Assunção, com a adoção de medidas de promoção do desenvolvimento regional voltadas para a superação das assimetrias regionais (eufemismo para a adoção de instrumentos para reduzir as desigualdes econômicas entre seus membros), obrigará o país a acompanhar o ritmo de comboio imposto pelas economias menos desenvolvidas (mormente agora, quando se anuncia a próxima incorporação de Equador, Bolívia, Guiana e Suriname, países cujos interesses econômicos estão longe de ser coincidentes com os do setor produtivo nacional). O Mercosul - abalado juridicamente de morte pelo ingresso da Venezuela ao arrepio da lei e politicamente pela crescente presença bolivariana (com todas as implicações em termos de relacionamento externo) - deixa definitivamente de ser um instrumento para o desenvolvimento econômico e comercial e passa a se constituir em um grande programa assistencial brasileiro. Sua ampliação, nessas condições, o torna cada vez mais um "alter ego" da UNASUL, cujas identidades começam a se confundir. A estabilidade política, econômica e social na região é um indiscutível e legítimo objetivo de nossa política externa, mas ao adotar as medidas destinadas a alcançar esse propósito via organismos multilaterais, perde-se o controle das iniciativas e submete-se o país a uma camisa de força indesejada.
Além disso, embarcamos em uma iniciativa já malograda na Europa, conforme está nitida e dramaticamente comprovado pela crise da eurozona e pelo reiterado desperdício de recursos (até a pouco quase infinitos) em regiões como o Mezzogiorno italiano (a Sicília ameaça neste momento "default" e compromete os planos de austeridade do governo Monti). Décadas de aplicação de uma cornucópia de recursos comunitários na Europa mediterrânea produziram apenas economias vulneráveis, destituídas de sustentabilidade própria. Fica assim exposto à luz do dia o artificialismo do sistema assistencial a essas economias (via fundos estruturais que nunca promoveram um desenvolvimento real, nem a competitividade desejada). Os grandiosos investimentos na infra-estrutura dessas regiões são hoje um grande monumento à prodigalidade em tempos de bonanza. A rede viária implantada é totalmente descolada da existência de atividades econômicas rentáveis (serviram apenas aos interesses das grandes empreiteras locais).
A crise atual da eurozona expõe assim os limites do solidarismo econômico e revela o irrealismo das propostas de igualitarismo regional. Onde estão as novas Alemanhas? (esta, afetada pelo mau desempenho das economias da região, está inclusive ameaçada de perder seu grau de investimento AAA). O bloco europeu também teve esgarçada sua solidez pela admissão apressada, em caráter político, de países que não haviam concluído as reformas internas necessárias para atender às exigências técnicas de seus protocolos de adesão, de acordo com os requerimentos europeus. É como se a Alemanha tivesse que incorporar novas Alemanhas Orientais, com seus modelos industriais ineficientes, sobreemprego e, muitas vezes, uma generosa legislação social .
O Brasil deveria fazer uma leitura correta desses acontecimentos, de forma a não repetir os erros acumulados além-mar. E também repensar o Mercosul. A TEC está hoje pulverizada, como resultado de repetidas perfurações, como reflexo das distintas estruturas produtivas e do atendimento a nossos setores menos competitivos, carentes de proteção. Por outro lado, o custo dos novos programas regionais será crescente e recairá sobre o Brasil (ainda inebriado com os superávits minguantes de suas exportações de "commodities" agrícolas e minerais). Os novos mercados - mesmo quando significativos, como é o caso da Venezuela - estariam ao alcance das exportações brasileiras via acordos de livre comércio. A estrutura produtiva dos novos sócios torna improvável sua adoção da TEC do Mercosul, tal como hoje definida, o que faz supor a apresentação de repetidos pedidos de revisão. A Venezuela é um país essencialmente importador (sobretudo nas condições atuais, em que sua competitividade está ameaçada por sucessivas estatizações). O que banca suas compras externas é a conta petróleo. Supor que esse país adotará uma tarifa externa compatível com os interesses brasileiros é ingenuidade ou má fé. Os demais (Equador, Bolívia, Suriname e Guiana) representam economias menos dinâmicas do que a paraguaia (marcada por sua vocação estritamente comercial até agora) e certamente estarão ainda menos propensos a adotar uma TEC de inspiração brasileira, por razões absolutamente compreensíveis (basta ver seu quadro produtivo interno).
A regressão do Mercosul a uma simples área de livre comércio - embora politicamente onerosa - eximiria o Brasil de compromissos indesejados e resguardaria nossos principais interesses (posto que a região absorve boa parte das exportações brasileiras de maior valor agregado). Essa medida liberaria nossos sócios (atuais e futuros) para eventuais acordos com a China ou os EUA. No caso chinês, entretanto, suas exportações tenderão - graças aos baixos salários ainda praticados e à desvalorização de sua moeda - a superar, com espetaculares saltos olímpicos, a barreira tarifária do Mercosul .
No Brasil, a China já tem livre trânsito nos setores de eletroeletrônicos, componentes para a indústria e bens de capital, que integram o esforço produtivo nacional (nesse caso, valendo-se de nossas próprias exceções à TEC e a nossos ex-tarifários). Supõe-se que o mesmo ocorra nos demais sócios, que certamente se valem de suas exceções para isentar de tarifas os produtos não produzidos( que são em maior número do que no Brasil). O impacto da eliminação da TEC não tenderia assim a ser de grande monta e propiciaria ao Brasil, desvencilhado dos programas multilaterais assistencialistas, produzir seu Plano Marshall para a região com nome próprio (e não através de recursos postos à disposição de uma burocracia regional voltada para interesses não necessariamente coincidentes com os nossos). O principal ator, na nova configuração, seria o BNDES que, em última instância, é quem paga a conta (para não mencionar o contribuinte brasileiro). Passaríamos assim a ter uma liberdade de ação e de critérios mais condizente com os interesses nacionais.
Renato L. R. Marques - 1/8/2012
Excelente! Congrats!
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